Papiros médicos do Antigo Egito

Artigo

Joshua J. Mark
por , traduzido por Cláudia Barros
publicado em 21 Fevereiro 2017
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Disponível noutras línguas: Inglês

A Medicina no Antigo Egito era concebida como a combinação de práticas médicas com rituais e encantamentos mágicos. Embora a lesão física fosse geralmente tratada através da colocação de talas, pomadas e bandas de pano, até o tratamento de ossos partidos e os procedimentos cirúrgicos descritos nos textos médicos eram considerados mais eficazes quando se recorria a feitiços mágicos.

The London Medical Papyrus
O papiro médico de Londres
The Trustees of the British Museum (Copyright)

Tais feitiços foram registados em textos, escritos em rolos de papiro, para que pudessem ser consultados pelos médicos sempre que necessário. Atualmente, qualquer um de nós se recusaria a ir a um especialista para ser tratado com base em encantamentos, óleos, incenso e amuletos sobre o corpo. No entanto, para os antigos egípcios esta parafernália de ações era um aspeto básico numa regular ida ao médico. Um dos textos médicos mais conhecidos, o Papiro Ebers, defende-o expressamente: “A magia é eficaz juntamente com a Medicina. A Medicina é mais eficiente em conjunto com a magia.”

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Magia e Medicina

O deus egípcio da magia, também deus da Medicina, Heka, é representado na iconografia com um cajado no qual figuram duas serpentes entrelaçadas (sem dúvida uma caraterística assimilada do deus sumério Ninazu, filho da deusa da saúde e da cura, Gula), símbolo esse que viaja até à Grécia Antiga e é adotado pelo deus Asclépio, e mais tarde associado ao “pai da Medicina”, Hipócrates. Atualmente, facilmente reconhecemos o caduceu, ou emblema/bastão de Hermes, como o símbolo da profissão médica, por todo o Mundo. As práticas mágicas e os encantamentos invocavam o poder dos deuses, tanto na Medicina como em qualquer outra área, com o propósito de atingir determinado objetivo. Na prática médica, os feitiços, hinos e encantamentos atrairiam os deuses para junto do médico, que, por sua vez, direcionava as energias divinas para o paciente. Heka era o nome que designava o deus da Medicina dos egípcios, mas também era assumido como o conceito de 'prática mágica'. A egiptóloga Margaret Bunson explica-o do seguinte modo:

“Os três elementos básicos relacionados com a prática do heka eram: o feitiço, o ritual e o mago. Os feitiços utilizados eram sempre os mesmos, mas alguns iam mudando conforme o passar do tempo, em que eram incluídos novos dados e termos que se achasse serem portadores de maior poder e que eram vistos como poderosas armas nas mãos dos praticantes.” (154)

Todos os médicos eram versados em magia e no modo como esta deveria ser usada em cada caso da maneira mais eficaz. O médico era um mago que tinha conhecimento de feitiços e rituais, desbloqueando, através destes, o seu poder. Quando um médico era chamado junto de um paciente, esperava-se que este o curasse da doença, pois os Deuses providenciar-lhe-iam os melhores feitiços e rituais essenciais para a cura. A tríade médico, feitiço e ritual era tida em grande consideração pelos egípcios, assim como as práticas médicas nos dias de hoje.

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Rolos de papiro

Estes feitiços estavam redigidos em rolos feitos da planta do papiro, que, cortada em tiras, era disposta em camadas e prensada, de modo a formar uma superfície lisa na qual fosse possível gravar qualquer texto. Todos os rolos tinham dois lados: o rosto (o lado da frente), em que as fibras da planta corriam na horizontal, e o verso (o lado de trás), onde corriam verticalmente. O rosto, sendo o lado preferido, era por onde normalmente se começava a redigir o texto; no entanto, quando este se encontrava cheio, o verso era utilizado para informação adicional ou em falta, por vezes podendo apresentar um texto completamente diferente. O Papiro Edwin Smith, por exemplo, contém procedimentos cirúrgicos no rosto e feitiços no verso. Contudo, enquanto alguns académicos interpretam ambos os lados como sendo um texto completo, outros sugerem que os feitiços foram adicionados ao papiro numa fase posterior. O papiro, em si, era um material muito caro, sendo constante a sua reciclagem para novos trabalhos, que se escreviam no rosto, no verso ou em ambas as faces.

“OS CONSELHOS QUE SURGEM EM TODOS OS TEXTOS MÉDICOS IMPLICAVAM UM SABER EMPÍRICO DO SUCESSO DAS PRESCRIÇÕES E PROCEDIMENTOS”

Os papiros médicos eram armazenados numa parte do templo conhecida como Per-Ankh ('Casa da Vida'), a qual era a combinação de um scriptorium – um espaço de redação e aprendizagem, uma espécie de biblioteca –, com um hospital ou uma escola médica. Diz-se que os médicos operariam fora da Per-Ankh, contudo não se tem grande certeza se tal significaria que tratavam pacientes no edifício, que estudavam aí ou se apenas se referiam ao conhecimento obtido; porém, é possível que a frase abarque todas as hipóteses referidas acima. Os complexos dos templos serviam, no Antigo Egito, como uma espécie de hospital, a que as pessoas recorriam sempre que necessitavam de apoio médico. Ao mesmo tempo, estavam associados a centros de aprendizagem.

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Os feitiços que os profissionais de saúde aprendiam não eram considerados arbitrários, visto serem reconhecidos como bastante eficazes, com base na experiência. Os conselhos que surgem em todos os textos médicos implicavam um saber empírico do sucesso das prescrições e procedimentos. O Papiro Erman, por exemplo, sugeria encantamentos e feitiços mágicos para a proteção das crianças e para uma gravidez saudável. Este texto, datado do II Período Intermédio (c. 1782-c. 1570 a.C.), é muito interessante por um grande número de razões, mas especialmente por refletir o conhecimento médico da altura. A Canção Mágica para Adormecer do Antigo Egito, cantada ou recitada pelas mães para protegerem os seus filhos das forças sobrenaturais, possui muitas similitudes com os encantamentos mencionados ao longo do Papiro Erman.

Textos médicos

Cada um dos diferentes textos médicos relaciona-se com um aspeto distinto de uma doença ou ferimento. Cada um possui o nome do indivíduo que o descobriu, comprou ou doou a um museu. Os nomes pelos quais eram conhecidos na realidade acabaram por se perder para sempre.

Embora haja numerosos papiros que mencionam feitiços, procedimentos cirúrgicos ou ambos, apenas aqueles que se associam diretamente com a prática médica – e que se acredita que foram consultados por verdadeiros médicos – serão referidos no próximo parágrafo. Um manuscrito como o Papiro Westcar, por exemplo, apesar de incidir em práticas relacionadas com o nascimento, não pode ser considerado como uma fonte medicamente aceitável, dado que encerra muita ficção histórica.

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Papiro de Berlim (Papiro Brugsch) – datado dos inícios do Império Novo, é considerado uma cópia de um tratado médico do Império Médio (2040-1782 AEC). Faz alusão à contraceção e à fertilidade, além de incluir informações sobre os primeiros testes de gravidez, nos quais era pedida uma amostra de urina à mulher, que de seguida era despejada na vegetação; mudanças nos níveis de hormonas seriam evidentes nos efeitos que a urina causaria nas plantas. Grande parte das recomendações nele apresentadas surge também no Papiro Ebers.

Papiro Carlsberg – consiste numa coleção de diferentes papiros de épocas distintas. Partes deste papiro datam do Império Médio, algumas do Império Novo e outras do século I AEC. O segmento datado do Império Novo, considerado uma cópia de um texto do Império Médio, refere problemas ginecológicos, gravidez e doenças da visão. As suas diferentes partes surgem escritas em hierático, demótico e grego antigo.

Papyrus Chester Beatty VI
Papiro Chester Beatty VI
The Trustees of the British Museum (Copyright)

Papiro Chester Beatty (também conhecido por Papiro Chester Beatty VI) – datado do Império Novo (c.1570-c.1069 AEC), encontra-se escrito em demótico, sendo o tratado médico mais antigo da História a referir a doença anorretal (que afeta o ânus e o reto). O papiro prescreve canábis como analgésico para o cancro do cólon e dores de cabeça, tornando-se no primeiro caso de prescrição desta planta a pacientes com cancro, anterior à menção de Heródoto relativa à capacidade alucinogénia da canábis, na sua obra Histórias ( século V AEL), considerada a mais antiga menção à droga.

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Papiro mágico de Londres e Leiden – datado do século III AEC, este papiro encontra-se escrito em demótico e refere os aspetos sobrenaturais da doença, além de encerrar feitiços relacionados com a adivinhação e o ressuscitar de mortos. Nele o médico é aconselhado sobre como proceder para ter visões e manter contacto com entidades sobrenaturais, de modo a curar o paciente, expulsando-lhe os espíritos maléficos.

Papiro Ebers – esta cópia, datada do Império Novo (c. 1550 AEC), parte de um outro trabalho datado do Império Médio. Menciona o cancro (referindo não ter cura possível), doenças cardíacas, depressão, diabetes, controlo de natalidade, problemas digestivos e infeções do trato urinário. Oferece-nos diagnósticos tanto 'científicos', como sobrenaturais para doenças e curas, além de encerrar alguns feitiços. É o mais longo e completo papiro médico encontrado até hoje, contendo mais de 700 prescrições e feitiços. Embora os egípcios tivessem um conhecimento leve acerca dos órgãos internos, concebiam o coração como uma bomba que fornecia sangue a todo o corpo. Problemas psicológicos, assim como a doença em si, surgem no texto como devidos a causas sobrenaturais.

Papiro Edwin Smith – datado do II Período Intermédio (c. 1782-1570 AEC), é uma cópia de uma peça mais antiga, escrita no Império Antigo (c. 2613-2181 AEC). Acha-se redigido em hierático e a sua datação corresponde a c. 1600 a.C. Alguns investigadores atribuem o papiro original a Imhotep (c. 2667-2600 AEC), também conhecido como o arquiteto da pirâmide de degraus do faraó Djoser. Imhotep era muito respeitado pela sapiência dos seus tratados médicos, nos quais defendia que a doença era natural, e não uma punição dos deuses ou algo relacionado com espíritos malignos. Ainda que o Edwin Smith se centre em tratamentos pragmáticos para lesões, é bastante possível que as afirmações de Imhotep tenham influenciado parcialmente o texto, mesmo não tendo este escrito o original. Este papiro é o mais antigo tratado que refere técnicas cirúrgicas e muito provavelmente foi escrito para cirurgiões em hospitais de campanha. O trabalho foca-se em práticas para aliviar a dor e tratar ossos partidos. Como já referido, os oito feitiços que surgem no seu verso são considerados por muitos estudiosos como uma simples adição ao papiro.

Edwin Smith Papyrus
Papiro de Edwin Smith
Jeff Dahl (Public Domain)

Papiro médico Hearst – trata-se de uma cópia do Império Novo de um manuscrito em hierático que remonta ao Império Médio. Contém prescrições para infeções do trato urinário, problemas digestivos e doenças semelhantes. Embora a sua autenticidade já tenha sido questionada, tem sido aceite como um papiro legítimo. Várias prescrições repetem algumas daquelas que surgem no Papiro Ebers e no Papiro de Berlim.

Papiro ginecológico de Kahun – datado do Império Médio (mais especificamente de c. 1800 AEC) e relativo à saúde feminina, é dos documentos mais antigos que retratam este tema, mencionando a contraceção, conceção e problemas da gravidez, assim como questões relacionadas com a menstruação. Sugere que uma mulher com terríveis dores de cabeça, por exemplo, sofre de “secreções no útero”, devendo ser desinfetada com incenso e tratada com óleo, e o seu médico deverá “mandá-la comer fígado fresco” para a recuperação. Muitas destas prescrições estão relacionadas com problemas que “vinham do útero” porque, segundo sugere a egiptóloga Joyce Tyldesley, “havia a errada suposição de que uma mulher saudável teria uma passagem que conectava o útero ao resto do corpo” (33). Distúrbios naturais ou sobrenaturais no útero afetariam o resto do organismo, pelo que aquele seria o órgão-chave a tratar. Outro texto médico, o Papiro Raméssida, é considerado uma cópia do Império Novo deste mesmo papiro.

Kahun Gynaecological Papyrus
Papiro ginecológico Kahun
Francis Llewellyn Griffith (Public Domain)

Papiro médico de Londres – datado do II Período Intermédio, este rolo consistia em prescrições medicinais e feitiços mágicos para lidar com problemas de pele, visão, gravidez e queimaduras, sendo os feitiços utilizados ao mesmo tempo que os procedimentos médicos. Acredita-se que tenha sido escrito por um grupo de médicos, tendo-se tornado numa autêntica referência naquele tempo. Alguns feitiços afastavam espíritos nefastos ou fantasmas, enquanto outros eram usados para aumentar as propriedades curativas do tratamento.

Conclusão

Todos estes textos eram vitais para a prática da Medicina no Antigo Egito, tal como as obras médicas dos dias de hoje. As prescrições e procedimentos, que demonstraram ser eficazes no passado, foram escritos de modo a serem preservados para outros profissionais. Bunson escreve:

“Os diagnósticos de lesões e doenças eram comuns e muito extensos na prática médica. Os médicos consultavam textos e faziam as suas próprias observações. Cada profissional de saúde fazia uma lista dos sintomas do paciente e a partir daí deduzia se teria capacidade, ou não, para tratar a doença. Se o sacerdote determinava que a cura era possível, o médico reconsiderava o tratamento e procedia de acordo com a situação. (158)

As capacidades de um médico egípcio eram vastamente reconhecidas no Mundo Antigo e o seu conhecimento e procedimentos cirúrgicos eram igualados aos dos gregos. A medicina grega era idolatrada por Roma, que adotou os mesmos princípios e práticas relativas às influências sobrenaturais. O médico romano Galeno (126-c. 216 EC) era muito conhecido por ter aprendido a arte médica com a rainha egípcia Cleópatra (mas não a mesma Cleópatra de que mais ouvimos falar). As práticas médicas romanas estabeleceram as bases para uma compreensão posterior da arte da cura, pelo que os antigos textos egípcios continuaram a influenciar a profissão médica até aos dias de hoje.

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Sobre o tradutor

Cláudia Barros
Licenciada em Arqueologia, em 2018, pela Universidade do Minho (Braga, Portugal). Atualmente, encontra-se a terminar a tese de Mestrado em Arqueologia, sobre Ksar Sghir (Norte de Marrocos), na mesma instituição (2018 - até ao presente). Principais interesses: Arqueologia, Arqueologia da Paisagem, Arqueologia Egípcia, Egiptologia, Arqueologia do Próximo Oriente, Arqueologia do Norte de Marrocos.

Sobre o autor

Joshua J. Mark
Escritor freelance e ex-professor de filosofia em tempo parcial no Marist College, em Nova York, Joshua J. Mark viveu na Grécia e na Alemanha e viajou pelo Egito. Ele ensinou história, redação, literatura e filosofia em nível universitário.

Citar este trabalho

Estilo APA

Mark, J. J. (2017, Fevereiro 21). Papiros médicos do Antigo Egito [Ancient Egyptian Medical Texts]. (C. Barros, Tradutor). World History Encyclopedia. Obtido de https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1015/papiros-medicos-do-antigo-egito/

Estilo Chicago

Mark, Joshua J.. "Papiros médicos do Antigo Egito." Traduzido por Cláudia Barros. World History Encyclopedia. Última modificação Fevereiro 21, 2017. https://www.worldhistory.org/trans/pt/2-1015/papiros-medicos-do-antigo-egito/.

Estilo MLA

Mark, Joshua J.. "Papiros médicos do Antigo Egito." Traduzido por Cláudia Barros. World History Encyclopedia. World History Encyclopedia, 21 Fev 2017. Web. 19 Abr 2024.